Quem te faz chegar nos livros

Fonte: Centro Cultural São Paulo | 12/Dez/2024

O dia estava levemente nublado e o clima, equilibrado. A temperatura amena depois de uma semana quente e abafada era um alívio e o moletom claro que usava até parecia demais para aquele dia. Até que eu desci ao subsolo do Centro Cultural São Paulo e a escolha de vestiário pareceu fazer algum sentido. Ali, o ar era mais frio do que o normal. Contente com a sensação que percorria meu corpo, me direcionei até uma sala espaçosa, com algumas mesas de funcionários e muitos livros. Ao fundo dela, uma mesinha branca e encostada à parede de drywall é etiquetada como mesa de triagem e doações. Na parede acima, um mapa antigo do estado de São Paulo. Na mesa, livros como “Hibisco Roxo”, de Chimamanda Ngozi Adichie, “Escrever”, de Marguerite Duras e “Antologia Poética” de Manuel Bandeira em perfeito estado e em edições coloridas esperavam para ser catalogados. Ou pendurados. Ou duplicados. Assim acontece com muitos outros livros, organizados em estantes de ferro a pouco mais de um metro de mim.

“Quando o livro chega, a gente vê o estado físico dele, se sujo, se rasgado, o negócio todo. A atualidade também. Às vezes você vê um livro de geografia que não tem o [estado do] Tocantins. Não vai servir. A Biblioteca tem que informar, não desinformar”. Quem diz isso é Célia Diniz, funcionária da catalogação da Biblioteca Pública Municipal Sérgio Milliet, uma das 3 bibliotecas do Centro Cultural São Paulo. Os processos que fazem parte de sua rotina de trabalho passam por três operações básicas: a pendura, a duplicação e a catalogação, com a ajuda de um sistema chamado Alexandria.

Segurando um dicionário de inglês, ela exemplifica: “Se eu ponho o título no Alexandria e ele me dá exatamente o mesmo livro, eu não vou fazer nada naquela tela de catalogação.” Ela me antecipa que a palavra a seguir pode ser engraçada. “Eu só vou pendurar, ou seja, vou acrescentar um exemplar naquele título, um exemplar que vai ser nosso [do CCSP].” A duplicação é feita quando o livro, já encontrado no sistema Alexandria, possui alguma diferença em sua edição e precisa ser registrado. A catalogação pura acontece quando o livro não existe no sistema e o bibliotecário precisa preencher todas as suas informações. 

Seguindo todos esses procedimentos, Célia chega a uma média variável de 20 livros catalogados por dia, que revela a profundidade de um trabalho oculto. “Tem assuntos que são fáceis e rápidos, mas tem aqueles que você fica conversando, deixa o livro parado por uma semana porque você acha que é de tal categoria, aí você anota num papel e deixa marcado [para ver depois].” Os assuntos que Célia tem mais facilidade são os de Ciência e Tecnologia, graças a uma experiência de trabalho que teve no passado. A grande sacada de sua função se manifesta em assuntos de maior dificuldade, como os de Ciências Sociais, a chamada “área 300”. “É como quando você escreve um texto e sente a lâmpada amarela ainda acesa na sua cabeça, então você vai rever até ficar feliz com o que você escreveu.”

Durante a conversa, pareceu impossível para Célia que seu trabalho, mesmo com todas as particularidades, fosse visto isoladamente do restante das bibliotecas. Isso porque os bibliotecários como Célia, têm a missão de fazer o livro chegar até o público por meio de uma catalogação bem feita. “Se eu classifiquei aquele livro de uma forma que não vai ser útil lá em cima [na Milliet], nem adianta. Pode estar muito bem classificado, mas se o pessoal não puder orientar aquele livro para ninguém, meu trabalho não foi bem feito”, comenta. 

Presente na catalogação de livros desde antes da informatização das bibliotecas, Célia viveu o período em que surgiu a necessidade de aumentar o ritmo de seu trabalho. O responsável por abarcar essa mudança foi o “fast cat”, termo que se origina de “catalogação rápida”. Com permissão para trocadilhos, os bibliotecários da época carinhosamente o chamavam de “gato rápido”. Após alguns estudos e aperfeiçoamentos, a técnica pôde ser substituída pelo Alexandria, usado até os dias de hoje.

As memórias valiosas de Célia com os livros e as transformações atravessadas por eles não acabam por aí. “O meu avô veio de Portugal para o Brasil. Na época não existia bolsa ou mochila, o pessoal vinha de baú mesmo. Então, eu cresci vendo um baú na minha casa, cheio de livros.” Ela parece atribuir a personalidade “xereta e curiosa” de seu avô a sua própria personalidade. “Não é à toa que eu virei bibliotecária”. Ela tinha contato com livros de vários gêneros e assuntos, que iam de romances portugueses a livros de religião. 

“Eu cresci com o baú do meu avô e com os meus dois tios que compravam jornal. Meu tio José gostava da Folha de S. Paulo e comprava todo dia. Já o seu Antônio não tinha muita paciência de ler todo dia, então ele comprava o Estadão de domingo, na época que o Estadão devia ter uns 10 quilos, o jornal era pesado ‘pra cachorro’. Então eu cresci nesse meio de livros e revistas, de livros e de jornais. Estar no meio dos livros para mim é uma coisa natural.” Cerca de 800 livros compõem sua biblioteca pessoal atualmente que, para ficar igual a uma biblioteca de verdade, só falta colocar etiquetas nos livros. 

Os paralelos entre a parte invisível das bibliotecas e a parte visível me acompanharam durante toda a conversa e me levaram até Felipe, funcionário da Biblioteca Pública Municipal Louis Braille. A história de Célia com a profissão foi parte importante da história dele, que recentemente iniciou sua trajetória na catalogação. 

Espaço que fica ao lado da Gibiteca Henfil, a Biblioteca Louis Braille tem como especialidade livros para pessoas com deficiência visual. Quando encontro Felipe pela primeira vez, ele está sentado na copa fazendo uma refeição. Vestindo uma camisa xadrez azul por cima de uma camiseta cinza escura, com a face ligeiramente rosada e uma voz doce, ele me recebe com um ar acolhedor e conversa comigo sobre diversos assuntos antes de nos sentarmos em sua mesa de trabalho. Ao nosso redor, uma estagiária da Biblioteca faz a revisão de um livro em braille. Em sua mesa, está o livro  “História de Quem Foge e Quem Fica”, da autora italiana Elena Ferrante. “A gentecatalogando esse porque sendo muito procurado.” A demanda do público leitor é que orienta a catalogação dos livros na Biblioteca Louis Braille. “A gente vê a demanda dos nossos usuários, o que eles gostariam de ler, fazemos uma pequena curadoria e nos programamos para produzir esses livros.”

Enquanto a tela do seu computador exibe o azulado sistema Alexandria, Felipe explica o esquema de “autoprodução” da Biblioteca Louis Braille, fator que diferencia seu processo de catalogação de outras bibliotecas. “Os livros são escaneados e tem um programinha que já passa para braille, só que vai precisar de uma correção.” A primeira revisão, então, é feita por meio de um programa que transforma as transcrições em áudio. “Após essa correção, o livro é impresso em uma impressora em braille com relevo e passa por mais uma revisão.” Esse último processo conta com a ajuda de voluntários que leem o livro que originou a versão em braille para pessoas com deficiência visual, que comparam o que ouviram com o que está escrito na nova impressão. 

Assim, os livros ficam prontos para catalogação, que também guarda algumas diferenças do processo feito por Célia. “Esse livro foi impresso aqui na Braille, então o local de publicação dele não vai ser da editora original daquele livro, e sim aqui da Biblioteca Louis Braille”. O mesmo acontece com o ano de publicação, que deve condizer com o ano de impressão da versão em braille. 

Depois de catalogados, os livros estão disponíveis para empréstimo presencial ou por cecograma, um serviço postal para pessoas com deficiência visual que permite que os livros da Biblioteca Louis Braille sejam enviados para fora de São Paulo gratuitamente e pelos correios. Segundo Felipe, é a maneira mais comum de empréstimo. 

Com 5 meses* de contribuição com a Biblioteca, Felipe afirma, com um sorriso no rosto, a sensação de um grande desejo sendo realizado. “Eu sempre gostei de trabalhar com materiais diferentes, por isso eu fui lá para Discoteca quando eu tinha passado no concurso. Aqui, eu vim para aprender o material braille, que pra mim é um material bem particular, e sendo bem legal”. Nesse tempo, ele também aprendeu o sistema braille a fim de ter mais autonomia em seu trabalho. 

Toda a biblioteca, de forma conjunta, conecta presente, passado, futuro e traz uma perspectiva de renovação. O livro ganha uma nova vida quando chega a um acervo público e passa a ter em sua rotatividade o seu maior valor. Amores longevos, como o de Célia, e revitalizados, como o de Felipe, se encontram em cada um desses livros que ocupam as bibliotecas do Centro Cultural São Paulo, atingindo cada vez mais e mais diversos leitores. 

 

*As entrevistas foram realizadas em setembro de 2024.

 

Autoria: Bárbara Bigas

Revisão: Isabela Pretti

Arte: brenda akekid

Agradecimentos: Célia Diniz, Felipe Barreto e Juliana Lazarim, da Supervisão de Bibliotecas do Centro Cultural São Paulo.

 

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Este conteúdo foi originalmente publicado no site “https://centrocultural.sp.gov.br/"
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